Tragédia na Espanha mostra o papel do seguro nos desastres naturais

Diferentemente do RS, onde setor pouco fez pelas vítimas, cat pool espanhol deve pagar mais de R$ 21,5 bilhões em indenizações

Imagem de vídeo feita durante as inundações no sudeste espanhol (Reprodução: El País)

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Em meio ao desastre, cat pool espanhol dá uma lição aos mercados de seguros de outros países

Quem acompanhou as enchentes de março no Rio Grande do Sul não estranhou as imagens difundidas nas últimas duas semanas desde a região de Valência, na Espanha.

No final de outubro, chuvas de uma intensidade inédita pegaram os cidadãos de surpresa, causando mais de 220 mortes e um nível de destruição que jamais se havia visto.

Despreparadas após vários anos ignorando alertas de que era necessário investir em medidas de prevenção, as autoridades não souberam como reagir de forma imediata às inundações, e os sistemas de aviso de emergências falharam em fazer o seu papel.

Milhares de voluntários se ofereceram para ajudar as vítimas, e as doações se multiplicaram desde todo o país. Ao mesmo tempo, todo tipo de pilantra aproveitou as enchentes para difundir notícias falsas nas redes sociais a fim de tirar dinheiro de desavisados com boas intenções ou de avançar agendas políticas extremas.

O que foi diferente, no caso espanhol, é que as vítimas das enchentes não têm motivos para pensar que o setor de seguros deixará de cumprir o seu papel na tragédia – ao contrário do que ocorreu no Rio Grande do Sul.

Isso porque a Espanha possui sistema de cat pool, ou seja, de cobertura mutualizada de perdas catastróficas, que deixa sua indústria seguradora muito mais bem preparada que em outros países para enfrentar este tipo de emergência.

O Consórcio de Compensación de Seguros, ou CCS, estima que vai pagar sinistros no valor de 3,5 bilhões, ou R$ 21,5 bilhões, como resultado da tragédia.

Para fins de comparação, a CNSeg espera que as enchentes do Rio Grande do Sul custem ao setor míseros R$ 4 bilhões, apesar de que a área atingida tenha sido muito mais ampla que em Valência e nas outras regiões espanholas que foram afetadas nas últimas semanas.

Por que tanta discrepância?

A diferença de participação de mercado tem uma explicação simples, e que nada tem a ver com a boa vontade das seguradoras ou com o papo-furado de “devolver à sociedade” quando se paga um sinistro.

O que há por trás da elevada cobertura de seguros contra enchentes na região de Valência é uma estrutura inteligente, construída durante décadas, que permite ao mercado oferecer coberturas de um risco que não apetece a ninguém.

O CCS, ou simplesmente Consórcio, como o mercado se refere a ele, é um organismo estatal que se autofinancia através de uma cobrança extra sobre as apólices de seguros de danos à propriedade e de automóveis em toda a Espanha.

Ambas as coberturas estão muito difundidas no país. Na região de Valência, se estima que 76% dos imóveis possuem um seguro de danos à propriedade. E quem tem um carro é obrigado a ter no mínimo um seguro de responsabilidade de terceiros.

Cada apólice de seguros cobrindo tais riscos (e mais o risco de lucro cessante) é objeto de uma sobrecarga também obrigatória que é repassada diretamente ao CCS. A sobretaxa incide ainda sobre os contratos de seguros de vida, por motivos que explicaremos adiante.

As sobretaxas que financiam o cat pool espanhol

  • Seguros residenciais: 0,07% do valor da apólice

  • Property empresarial: 0,18%

  • Property de ativos de infraestrutura (como estradas): 0,28%.

  • Coberturas de lucro cessante: 0,18%

  • Seguros de saúde e de vida: 0,003%

  • Seguros de automóvel: 2,10 (R$ 12,90) por apólice

São valores relativamente modestos, e vale notar que a maioria das apólices é taxada de maneira proporcional aos valores segurados. Desta maneira, quem tem uma mansão de oito quartos paga muito mais do que quem é proprietário de uma quitinete. Uma fábrica de automóveis também contribui quantias muito mais elevadas que a frutaria da esquina.

Outra vez vale comparar: a CNSeg quer cobrir os desastres naturais com uma taxa única, do mesmo valor, a ser cobrada em todas as contas de luz. R$ 3 de mordida tanto para quem paga a conta de um puxadinho na favela como para quem vive em uma cobertura no Leblon.

Um colchão para os dias difíceis

O resultado de tais sobretaxas é que, ao final de 2023, o CCS tinha um colchão de reservas de quase 10 bilhões (R$ 61 bilhões) para cobrir riscos catastróficos como as enchentes, terremotos, vendavais, erupções vulcânicas e até quedas de meteoros.

A entidade também cobre danos à propriedade causados pelo ser humano, como ataques terroristas, rebeliões, motins e tumultos populares. Neste caso, a cobertura se estende aos cidadãos espanhóis que possuem seguros de vida e são vítimas de tais eventos no exterior.

É muito risco coberto, mas as reservas são suficientes para cobrir confortavelmente os gastos das enchentes de Valência, que certamente constituirão o sinistro de seguros mais caro da história da Espanha.

Antes disso, o máximo que o CCS havia pagado havia sido quase € 1 bilhão, em valores de hoje, durante fortes cheias que atingiram o País Basco nos anos 1980.

A pergunta que se faz aqui é: como se formou tamanho colchão? A resposta é que não foi da noite para o dia. O CCS já funciona há mais de 70 anos, e na maioria dos exercícios arrecada mais prêmios do que gasta em sinistros.

Não é preciso ser um gênio atuarial para concluir que, no decorrer de tanto tempo, os superávits anuais do CCS acabam gerando uma forte reserva acumulada, ainda que 86% do capital esteja investido em seguríssimos títulos da dívida do governo espanhol.

Por exemplo, no ano passado o Consórcio arrecadou € 794 milhões de prêmios para riscos catastróficos e pagou € 453 milhões em sinistros, no que já foi um ano difícil em termos de eventos cobertos. Nas coberturas de automóveis, cobrou € 91,6 milhões e pagou € 75,8 milhões. O índice combinado foi de 57,1% para os riscos extraordinários e 82,8% para os seguros de automóveis.

Força das águas causou perdas inéditas na Espanha (Reprodução: El Periódico)

Como se trata de uma entidade que não precisa pagar dividendos, já que não possui acionistas, a diferença vai diretamente para as reservas. É que ocorre na maioria dos anos, ainda que seguramente não será o caso de 2024 e, possivelmente, 2025.

No decorrer dos anos, essas sobras se acumulam e acrescentam rendimentos financeiros ao bolo também. Tanto que, em 2017, o CCS até decidiu baixar as sobretaxas um pouquinho porque considerou que suas reservas eram suficientes para cobrir os cenários mais pessimistas previstos nos modelos.

Uma estrutura que agiliza pagamentos

Não é só a garantia da cobertura que um esquema de riscos catastróficos como o CCS garante. Bem elaborada, uma estrutura desse tipo também ajuda a processar os sinistros com maior rapidez, transparência e eficiência.

Nos dias posteriores à tragédia, o CCS vem mantendo o mercado e as vítimas informadas sobre como anda o processo de gestão dos sinistros. A mais recente nota emitida pela entidade afirma que, até o dia 8 de novembro, 138.317 pedidos de pagamento já haviam sido registrados por segurados.

Os pedidos de indenização da enchente espanhola

  • Propriedades residenciais: 43.608

  • Automóveis: 83.437

  • Imóveis de escritórios: 593

  • Riscos industriais: 2.513

  • Armazéns e estabelecimentos comerciais: 8.137

  • Obras de construção civil: 29

Para lidar com tudo isso, o CCS já abriu 71.604 processos de inspeção e mobilizou 800 loss adjusters para fazer a peritagem. O organismo disse que alguns pagamentos já começaram a ser feitos.

Ao mesmo tempo, orienta aos segurados que leiam suas apólices para saber exatamente o que será pago. As apólices mais completas podem cobrir até mesmo equipamentos eletrônicos danificados pela água.

Bom para os segurados, mas e para as seguradoras?

A resposta é que o sistema é positivo para as seguradoras também.

Para começo de conversa, permite que o mercado ofereça coberturas de danos à propriedade a preços ajustados ao risco sem incluir o pior e mais imprevisível deles, que é a exposição catastrófica.

No caso de um desastre como o de Valência, o colchão do CCS acaba amortecendo a queda de todo o mercado. As seguradoras ainda terão que cobrir muitos sinistros não cobertos pelo esquema, mas nem de longe a conta do setor chegará aos € 3,5 bilhões que o CCS espera pagar.

Ainda assim, as seguradoras compartilham parte do risco através de suas margens de lucro. A sobretaxa, apesar de reduzida, afeta o preço final do seguro. Em um mercado competitivo, cada vez que uma seguradora reduz a tarifa de uma cobertura com sobretaxa para atrair mais clientes, está na prática assumindo parte do risco catastrófico em seu balanço.

Outro ponto importante é que o CCS evita que uma catástrofe impacte de forma relevante os contratos de resseguros das seguradoras primárias. Em um mercado de resseguro que está bastante enjoado para este tipo de risco, isso não é pouca coisa.

Não é para menos que, nos últimos dias, analistas como a S&P e a Bloomberg Intelligence disseram que o maior desastre da história da Espanha vai ter um impacto limitado sobre a indústria de seguros do país. E isso não foi porque o mercado se absteve do risco, como ocorreu no Rio Grande do Sul.

Como o CCS foi criado: um exemplo a ser repetido?

CCS também cobre danos a automóveis durante as catástrofes (Reprodução: El País)

As fortes inundações no sudeste da Espanha terão também um impacto limitado em um mercado global de resseguros já um pouco alérgico ao risco catastrófico.

Apesar de ter a possiblidade de transferir parte de seus riscos ao resseguro global, o Consórcio de Compensação de Seguros até hoje decidiu não fazê-lo, por considerar a operação pouco atraente do ponto de vista financeiro.

Foi o que disse Celedonio Villamayor, o Chief Operating Officer do CCS, em uma recente entrevista à RSB.

A RSB foi ao escritório do CCS em Madri algumas semanas antes da enchente valenciana justamente para aprender mais sobre a experiência da entidade na transferência de riscos catastróficos.

Villamayor explicou que o CCS não se limita a cobrir eventos catastróficos de danos à propriedade. Junto com outro pool, chamado Agroseguros, o CCS também cobre parte da exposição catastrófica da agricultura espanhola.

Um outro braço da entidade possui € 2,5 bilhões em reservas para utilizar na dissolução de seguradoras insolventes, se necessário.

Além disso, a fortaleza do pool faz com que o estado às vezes convoque o CCS para cobrir lacunas do mercado. Em 2001, após os ataques em Nova York e Washington, o Consórcio concedeu temporariamente seguros de aviação às empresas aéreas de bandeira espanhola em um momento que o mercado global havia secado para o risco.

Após a crise financeira de 2008 e a durante a pandemia de Covid-19, o CCS foi chamado a criar capacidade de seguro de crédito para que as empresas espanholas reduzissem sua exposição a uma eventual onda de calotes. Uma vez mais, o mercado privado havia se retirado momentaneamente do segmento.

“Nós atuamos como uma seguradora, uma co-seguradora e uma resseguradora para dar estabilidade ao sistema e assegurar que há uma variedade e profundidade de coberturas disponíveis no mercado”, disse Villamayor.

Títulos da dívida para garantir a solvência do sistema

Ele também contou que o CCS é frequentemente chamado a expor sua experiência em outros países interessados em criar seus próprios regimes catastróficos. Na opinião dele, a experiência pode ser reproduzida, ainda que os governos relutem em alocar os recursos necessários para dar o pontapé inicial.

Isso porque são necessários bilhões de dólares para criar um regime catastrófico em condições de já começar podendo cumprir o seu papel. No caso da Espanha, a solução encontrada pelo governo foi emitir, ainda no final dos anos 1930, títulos da dívida que foram comprados pelas seguradoras.

Foi uma decisão tomada em um momento de emergência. Após a guerra civil de 1936 a 1939, várias cidades da Espanha haviam sido arrasadas. Se as seguradoras tivessem que pagar pelos sinistros, o setor certamente teria ido à bancarrota.

Comprando os títulos emitidos pelo governo, porém, as seguradoras conseguiram diluir o gasto por vários anos, ao mesmo tempo em que liberaram capital para os sinistros.

Villamayor conta que a ideia inicial era que o sistema tivesse uma validade limitada, mas em 1941 um grande incêndio destruiu a cidade de Santander e uma fórmula parecida foi utilizada para pagar os sinistros de uma só vez sem fundir o setor de seguros.

Em 1954, o CCS se tornou um organismo permanente, e com o decorrer dos anos teve suas atribuições aumentadas para funcionar como um amortecedor para o mercado dos riscos que as seguradoras têm medo de subscrever.

Caráter solidário

A atuação dos cat pools não é isenta de crítica.

Algumas empresas se queixam de que todas têm que pagar a mesma tarifa para financiar o regime catastrófico local, mesmo que seus ativos estejam localizados em áreas não expostas a desastres naturais.

Além disso, o sistema não premia empresas que possuem processos de gerência de riscos de alta qualidade.

Há também quem argumente que cat pools acabam servindo de justificativa para que as seguradoras relaxem em suas exigências de prevenção de riscos durante o processo de subscrição.

Mas Villamayor diz que a solidariedade do sistema mutualizado é fundamental para que os riscos sejam compartilhados por todos os segurados, diretamente expostos ou não. Afinal, os benefícios para a indústria de seguros acabam sendo sentidos por todos os participantes do mercado.

“O caráter obrigatório nos permite evitar a seleção negativa dos riscos, e como resultado as tarifas necessárias para cobrir todos os nossos riscos são bastante baixas”, afirma ele.

A discussão que está faltando no Brasil

Ter um regime de seguros catastróficos não significa que o Estado não vai pagar nada – o governo espanhol já anunciou a liberação de mais de € 14,5 bilhões (R$ 89,2 bilhões) em ajuda para a reconstrução das regiões afetadas pela enchente.

Mas reduz o tamanho da conta bancada pelo contribuinte e, principalmente, agiliza o processo de reconstrução da vida das pessoas e a retomada das atividades das empresas.

Esta é a verdadeira função social do seguro – estar com seus clientes quando eles necessitam. Quando paga um sinistro, o setor não está fazendo nenhum favor à sociedade, está apenas cumprindo sua parte em um contrato.

Para que esta parte seja assumível pelo setor privado no caso dos cada vez mais frequentes eventos catastróficos, é preciso compartilhar o risco entre todos os participantes do mercado, e também com o Estado.

É o que faz o CCS na Espanha, e o que realmente deveria estar sendo discutido no Brasil.

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