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RS: o fracasso da prevenção de riscos e a abstenção do seguro
Gestão de riscos catastróficos parece não interessar nem aos governos nem ao setor
Foto: Reprodução
O Brasil agora está focado em como ajudar o Rio Grande do Sul e seus habitantes a se recuperar da tragédia humana e econômica sem precedentes que são as enchentes das últimas semanas. Isso não deve evitar, porém, que mais atenção seja dada a como reduzir o impacto das próximas catástrofes naturais que inevitavelmente vão atingir o país.
Porque até o momento o Brasil tem se provado um desastre no que diz respeito à gestão do risco de desastres naturais. E a indústria de seguros tem parte da responsabilidade por isso.
Nesta semana, o Valor Econômico revelou que, entre 2015 e 2023 o governo federal destinou entre 0,01% e 0,03% do PIB para programas de gestão de riscos de desastres naturais, e boa parte do dinheiro nem chegou a ser de fato gasto.
Antes, o UOL já havia apurado que a Prefeitura de Porto Alegre não investiu nem um tostão na prevenção de enchentes em 2023, apesar de ter mais de R$ 450 milhões alocados para esse fim.
O descaso é representativo da forma como os governantes brasileiros lidam com a coisa pública. Investimentos em prevenção de riscos, por definição, não aparecem se forem bem sucedidos e mitigarem os efeitos de enchentes, secas e outros eventos naturais.
Já políticos distribuindo bolsas de comida e liberando verbas de reconstrução podem marcar pontos com os eleitores. Não é difícil entender por que, do ponto-de-vista das administrações públicas, remediar tende a ser mais lógico do que prevenir.
Uma ideia pouco convincente
Mais surpreendente é que algo parecido parece ocorrer no mercado segurador, um setor que deveria primar pelo foco na gestão e prevenção de riscos.
Nas últimas semanas, as redes sociais foram inundadas com posts de seguradoras sobre suas doações ou ações de emergência destinadas a ajudar aos gaúchos afetados pela tragédia.
Iniciativas certamente louváveis, mas que que são gotas de água em um oceano catastrófico que não devem obscurecer o fato de que o setor não está desempenhando o papel que deveria na luta contra os efeitos dos desastres naturais no Brasil.
O que o setor segurador não faz é justamente cumprir sua principal missão: prover coberturas que possam auxiliar as vítimas e as empresas afetadas por uma catástrofe no processo de reconstrução. E, no processo, pressionar seus clientes a investir em prevenção.
A penetração de seguros contra enchentes no Brasil é irrisória, já que é uma rara cobertura adicional à pouco utilizada apólice de seguro habitacional, que, segundo dados da FenSeg, só cobria 17% das residências brasileiras em 2021.
É preciso admitir que a indústria de seguros não gosta do risco de inundação, e isso não é algo exclusivo do Brasil. Trata-se de um risco difícil de modelar, em que há uma escassez de dados sobre sinistros em países como o Brasil, e que vem aumentando em intensidade muito rapidamente nos últimos anos.
Mesmo nos Estados Unidos, o mais avançado mercado de seguros do mundo, a criação de oferta de seguros contra inundações em lugares como a Flórida ou a Califórnia exigiu a participação do governo com incentivos e ferramentas de mutualização de riscos que ajudaram a reduzir a exposição dos subscritores primários.
Hoje o sistema americano está em crise, em parte devido ao aumento da frequência e intensidade dos eventos climáticos, em parte porque as facilidades concedidas pelo Estado alimentaram uma concorrência exagerada que fez com que algumas seguradoras relaxassem a análise do risco, sofrendo perdas elevadas como resultado.
Mas há outras experiências mais bem-sucedidas que podem inspirar um maior envolvimento do mercado de seguros na prevenção e transferência de riscos catastróficos no Brasil.
Aprender com o que já existe
Por isso é tão decepcionante que, convidada a participar do debate, a CNSeg só tenha podido elaborar uma proposta de criar um novo imposto, uma taxa fixa de R$ 2 ou R$ 3, a incidir mensalmente nas contas de luz dos cidadãos, a fim de pagar pela assistência de quem sofre os efeitos de uma catástrofe natural.
Uma proposta de cunho assistencialista e populista e altamente injusta, uma vez que não deveria ser o mesmo cobrar R$ 3 de quem paga R$ 100 por mês de luz e de quem paga R$ 1.000.
Mas ao menos há de se admitir que se encaixa nesta mentalidade tão brasileira de que é melhor remediar do que prevenir, e melhor ainda é remediar com o dinheiro alheio.
Doações às vítimas da enchente no RS (Foto: Agência Brasil)
Ênfase equivocada
A proposta da CNSeg é especialmente infeliz porque parece desconsiderar o fato de que o verdadeiro papel que a indústria de seguros pode ter no combate aos efeitos das catástrofes naturais não está no pagamento de sinistros, e sim na prevenção de riscos.
Quando as seguradoras assumem um risco, elas não querem pagar o sinistro relacionado, apesar do papo marqueteiro segundo o qual o setor “devolve recursos à sociedade” quando o faz.
Por esse motivo, as boas empresas do setor procuram avaliar com cuidado os riscos envolvidos e trabalhar com os compradores de seguro para reduzir a probabilidade de que um sinistro aconteça.
Mas, para fazer isso, é preciso antes de tudo estar disposto a assumir algum nível de risco. A proposta da CNSeg é um claro sinal de que o setor não quer saber nada de riscos catastróficos no Brasil.
Como a situação está hoje, é uma postura até compreensível. Os riscos de enchente ou de secas, as catástrofes mais comuns no país, estão mal modelizados e realmente fazem pouco ou nenhum sentido comercial. Mas há formas de torná-los mais atraentes para os subscritores, e o que não se compreende é a aparente falta de vontade de debater o tema.
O exemplo francês
Na França, por exemplo, todas as apólices de danos à propriedade cobram um extra de 12% que é usado para financiar o regime de catástrofes naturais do país (que cobre o risco de enchentes, entre outros). No caso das apólices de seguro de automóveis, a mordida é de 6%.
Do dinheiro extra arrecadado pelas seguradoras, 50% pode ser transferido para a CCR, uma resseguradora estatal, que é obrigado a aceitar a cessão. A CCR, por sua vez, se beneficia de uma garantia ilimitada do governo francês.
Se há um sinistro catastrófico de alto valor, a maior parte das perdas asseguradoras são cobertas pelo fundo administrado pela CCR, e só em casos extremos chegam aos cofres públicos.
A seguradora pode, porém, não transferir nada à CCR, arcando com os sinistros catastróficos que afetam suas apólices se uma enchente ocorrer. Poucas fazem isso, mas as regras abrem a possibilidade de uma seguradora apostar na qualidade de sua análise de riscos e das políticas de mitigação de seus clientes, se assim o desejar.
De qualquer maneira, as seguradoras ficam com 50% do risco catastrófico em seus portfólios, o que as motiva a caprichar em suas políticas de subscrição, e também a buscar formas de transferir parte dos prêmios ao mercado ressegurador ou de capitais.
O sistema foi criado nos anos 1980 e durante quatro décadas ajudou o mercado francês a crescer, expandir os níveis de cobertura tanto de sinistros catastróficos quanto de seguros de danos à propriedade, e a melhorar a qualidade da gerência de riscos no país.
Com as mudanças climáticas, porém, o governo francês teve que promover um ajuste, aumentando a taxa catastrófica para 20% nos seguros de Property e 9% para os de automóveis no ano que vem.
Nem isso deve ser suficiente. Mais medidas estão prestes a ser anunciadas para aumentar a resiliência do mercado francês, com uma ênfase muito forte na promoção de medidas de prevenção de riscos catastróficos, incluindo sobretaxas mais elevadas para segurados que não dão bola para o tema.
Outras experiências
Há também iniciativas sendo implementadas em mercados menos desenvolvidos do que o francês.
O Chile no ano passado emitiu cat bonds para transferir parte dos riscos de terremoto enfrentados pelo país, com foco na provisão de recursos para ações de emergência após um tremor.
Na prática, os cat bonds chilenos se transformam em coberturas de resseguros obtidas no mercado internacional com a intermediação do Banco Mundial.
A medida faz parte de um programa mais amplo de mitigação dos riscos de catástrofes naturais que está sendo implementada pelo governo chileno. O México também já vem implementando há décadas programas de transferência de riscos catastróficos ao mercado de capitais.
Em ambos os países, assim como no CCRIF, o programa de riscos catastróficos do Caribe, tecnologias de seguros paramétricos estão sendo utilizadas para auxiliar os investidores a entenderem melhor os riscos envolvidos e agilizar a liberação de recursos quando acontece uma catástrofe.
Em regiões mais pobres, experiências estão em desenvolvimento com o uso de tecnologias digitais e microsseguros para ajudar as populações ignoradas pelo seguro tradicional a se reerguerem financeiramente após uma catástrofe.
Falta urgência
Enfim, o envolvimento dos mercados de seguros, resseguros ou de capitais cria um incentivo em melhorar a gestão e prevenção de riscos, já que subscritores e investidores têm interesse em reduzir ao máximo a chance de sofrer grandes perdas. Um sentido de urgência que parece que governos brasileiros de todos os tipos parecem não compartir.
E tampouco, aparentemente, as seguradoras representadas pela CNSeg. Mas fica aqui a proposta para o mercado: chegou a hora de investir parte de seus consideráveis orçamentos de marketing em martelar a importância de gerenciar os riscos catastróficos no Brasil, antes que a opinião pública se esqueça do assunto e passe para outra coisa, motivando a classe política a sentar-se outra vez sobre o tema.
Há propostas em discussão no Congresso Nacional ou por parte de entidades como o Instituto de Inovação em Seguros e Resseguros da FGV ou a ONG ICLEI, que apresentaram suas ideias recentemente no Congresso Nacional, em um evento em que a mídia realmente só mostrou atenção ao infeliz imposto proposto pelo mercado segurador. Há que incentivar o debate sobre essas e outras ideias disponíveis no mercado e na academia.
Um projeto de lei para criar uma cobertura catastrófica ligada ao seguro habitacional atolou no Congresso desde 2022. Mais esforço tem que ser feito para educar famílias, empresas e governos sobre a necessidade de proteger seus bens com seguro, indo além de podcasts, vídeos de TikTok e patrocínios esportivos.
O setor tem que botar o pé na estrada para conversar com os consumidores que hoje são ignorados pela indústria e deixar para trás a desculpa de que falta “cultura de seguros” no Brasil (em que lugar do mundo o pessoal gosta de gastar dinheiro com seguro?, e é preciso falar mais sobre o microsseguro.
O setor necessita usar seus recursos de comunicação e lobby para convencer os governos que qualquer investimento inicial em programas de gestão de riscos ou incentivos para a expansão de seguros com componentes catastróficos trazem grandes retornos à sociedade no médio e longo prazo.
É uma batalha dura, mas certamente mais digna do que usar os recursos do setor para tentar agradar aos instintos mais assistencialistas da classe política com novas tungas aos consumidores.
Não há dúvida de que, mesmo com um regime de riscos catastróficos em vigor, o impacto da tragédia gaúcha teria sido enorme, e os cofres públicos bancariam a maior parte dos custos de recuperação.
Mas a prevenção de riscos poderia ao menos ter reduzido a conta, e um regime catastrófico poderia ter absorvido parte das perdas. Que, segundo fontes consultadas pelo Valor Econômico, podem chegar facilmente a R$ 150 bilhões.
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