Incerteza regulatória modera otimismo com seguro garantia

Falta de conhecimento por parte de entes públicos também pode frear crescimento do produto, apesar de novas regras que o incentivam

Canteiro de obra em barragem em Nova Lima, em Minas Gerais (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

A entrada em vigor de novas regras previstas pela Lei das Licitações e a expectativa de importantes investimentos em infraestrutura têm gerado otimismo de que o mercado de seguro garantia vai crescer com força nos próximos anos.

Incertezas jurídicas têm temperado, porém, o entusiasmo do mercado, já que a regulamentação da Lei de Licitações não resolveu, até o momento, todas as dúvidas que o setor possui sobre as regras que entraram em vigor em janeiro.

E não está nada claro que o setor público vai de fato abraçar a utilização mais ampla do seguro garantia em licitações pública.

Fonte: Susep

O mercado teve dois anos de período de transição para que a adoção das novas regras fosse efetivada. Nesse período, entes públicos tiveram a opção de lançar processos licitatórios com as novas regras, ou seguir utilizando as regras anteriores.

No entanto, segundo fontes, nenhuma licitação chegou ao mercado com inovações com um limite de cobertura de 30% do valor da obra, no caso de licitações com valor superior a R$ 200 milhões, uma das principais inovações trazidas pela lei de licitações.

Tampouco foram lançadas obras com a cláusula de retomada, ou step-in, que permite às seguradoras assumir a conclusão de uma obra, caso o vencedor da licitação tenha que abandoná-la.

Primeiros passos

Desde janeiro deste ano, as novas regras para o seguro garantia se tornaram obrigatórias nas licitações públicas. Ainda assim, o mercado teve que esperar até o dia 3 de abril para ver o primeiro exemplo de aplicação prática da norma.

Foi quando o governo de Mato Grosso lançou uma licitação para o asfaltamento de 50 km da rodovia MT-430, no valor de R$ 110 milhões.

O lançamento foi feito com pompa e contou com a participação de representantes da CNSeg e da Fenseg, ressaltando a importância dada pelas entidades representativas do setor a um tipo de edital que estava demorando para aparecer.

O edital prevê que o seguro garantia seja contratado com uma cláusula de retomada. Se a empresa vencedora não cumprir os compromissos assumidos, a seguradora responsável arcará com a responsabilidade de finalizá-la, ou terá que pagar ao Estado a indenização prevista na apólice.

Em nota, a CNSeg afirma que o governo mato-grossense pretende utilizar a mesma metodologia para outras obras a serem licitadas cujo valor supere R$ 50 milhões.

Será que vai pegar?

A iniciativa mato-grossense é certamente bem-vinda, mas resta ver se outras entidades de governo vão seguir o seu exemplo.

Especialistas consultados pela RSB dizem que a falta de conhecimento dos agentes de governo responsáveis pelas licitações públicas é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento do mercado de garantia para obras.

Não por acaso, eventos e reuniões estão sendo organizados pelo setor para explicar aos governos como o produto funciona.

De acordo com a nova Lei das Licitações, agora as seguradoras poderão oferecer coberturas de até 30% do valor dos projetos de infraestrutura licitados pelo setor público – isso quando se tratam de obras de mais de R$ 200 milhões.

Até então, o limite máximo era 10%, e as ofertas tendiam a ficar em torno de 5%.

O aumento do limite é considerado um importante avanço, uma vez que torna mais realista a ideia de que o seguro garantia de fato garanta a finalização da obra – o principal objetivo do produto.

Se um ente público exigir um seguro com cláusula de retomada, mas com só 5% de garantia, vai ser declinado pelo mercado. Limites de 5% ou 10% não são suficientes para convencer as seguradoras a assumirem esse compromisso.

Roque Melo, diretor da FenSeg e CEO da Junto Seguros

O advérbio que gera insegurança

Como tende a ocorrer, porém, o diabo está nos detalhes das novas regras.

Um deles é aparentemente inócuo advérbio “até”.

Analistas dizem que a presença da partícula no clausulado da lei abre a porta para que os licitantes exijam dos vencedores das licitações limites bem inferiores aos 30%.

O risco é claro: um limite maior significa um seguro mais caro, e nem todos os licitantes estarão convencidos de que vale realmente a pena encarecer o projeto para obter mais proteção.

Além disso, a regulamentação estabeleceu que o limite de até 30% só se aplica a obras com valor superior a R$ 200 milhões, o que as restringe a licitações realizadas pelo governo federal e governos estaduais e municipais como os de São Paulo e Rio de Janeiro.

Assumir as obras… e os passivos?

Outro problema identificado pelos especialistas é que não há clareza sobre exatamente o que uma seguradora vai herdar, no caso de assumir a retomada de uma obra coberta por uma apólice de seguro garantia.

Em teoria, seriam os custos de finalizar a obra e ponto final. Na prática, não se descarta a possibilidade de que as seguradoras também terão que arcar com passivos trabalhistas e tributários da construtora que não conseguiu terminar a obra.

Não se trata, nesse caso, de um risco desprezível. Acabar tendo que resolver uma pendência herdada de uma construtora no Coaf ou na Justiça Trabalhista é uma perspectiva capaz de deixar qualquer gestor de riscos de seguradora de cabelo em pé.

O advogado Marcelo Mansur, sócio do Mattos Filho, também afirma que não está 100% claro que a seguradora, no caso de retomada de um projeto, terá a liberdade de escolher a empreiteira que vai construir a obra na prática.

O temor nesse caso e que os rigores dos processos licitatórios e a imprevisibilidade das decisões judiciais obriguem as seguradoras e escolher a segunda colocada na licitação original, mesmo que não seja uma companhia de sua confiança.

Desafios técnicos

Além de certa incerteza regulatória, o mercado também precisa se adaptar a um aumento significativo das exigências técnicas que as seguradoras vão enfrentar, caso tenham que garantir a finalização de obras que muitas vezes são bastante complexas.

“A responsabilidade das seguradoras perante um risco com essas exigências aumenta”, afirma Angelo Colombo, CEO da Swiss Re Corporate Solutions no Brasil.

“Acreditamos que o principal impacto para as seguradoras, neste sentido, será um aumento do escrutínio nas análises de subscrição, saindo de uma análise mais focada na parte financeira, para trazer maior expertise na análise de projetos de engenharia, bem como um acompanhamento desses contratos e obras de forma a permitir que a seguradora consiga intervir, quando necessário, para que o objetivo final de entrega seja cumprido.”

Players do setor dizem que esse processo já está em andamento, e que as empresas que estão interessadas em crescer no seguro garantia para obras públicas reforçaram suas equipes durante os dois anos de transição regulatória.

Além disso, nem todas as companhias ativas no segmento de garantia vão acabar entrando no negócio. Muitas devem seguir focadas no produto da garantia judicial, que tem características diferentes e garantiu a performance do segmento nos últimos anos.

Fonte: Susep

A Susep já não diferencia entre o produto de garantia de obras públicas e o garantia judicial em suas estatísticas, mas analistas acreditam que o segundo pode responder por até 80% do total de prêmios no momento.

Se pegar, promete

Algumas empresas, como a AKAD afirmam que essa tendência já está começando a se reverter, ao menos em seu próprio portfólio (leia abaixo).

E, apesar das incertezas, há otimismo no mercado de que, desta vez, o seguro garantia para obras pode finalmente deslanchar.

A advogada Bárbara Bassani, corresponsável pela área de Seguros e Resseguros no escritório TozziniFreire, diz que é verdade que algumas dúvidas persistem sobre as novas regras, mas não parecem ser suficientes para impedir que licitações comecem a fazer um uso mais importante do produto.

Temos notícias de seguradoras que estão mais avançadas nessa frente, com produtos já praticamente prontos com base na lei. Mas o teste para saber se o produto de fato é bom ocorre na hora em que ele é testado, especialmente em situações de sinistro.

Bárbara Bassani, TozziniFreire Advogados

Se este realmente for o caso, o potencial de crescimento é alentador. Como observou Maria Fernanda Novo Monteiro, head Jurídico da Sombrero Seguros, em artigo exclusivo para a RSB, o seguro garantia é vital para o sucesso do Novo PAC anunciado pelo governo no ano passado.

Além disso, o novo limite de cobertura, aliado às cláusulas de retomada, podem ajudar a reduzir o número de obras que ficam pela metade – destino de 41% dos 21 mil projetos de infraestrutura em andamento no país, segundo relatório divulgado pelo Tribunal de Contas da União.

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